"Vou dormir.
A alma já a tenho em repouso.
Agora fecho os olhos
e espero o medo
e depois do medo a música
lembras-te da sinfonia
para pinheiros, maré-alta e concertina,
que compus em criança
com os olhos rasos de água,
agasalhado àquela antiga mágua
que a minha avó me emprestara ?
e depois da música ainda a música
a outra do segredo,
do espanto, da revolta e do degredo.
E só então, na paz que me matara,
vou sonhar com Moledo."
(
Do livro Graças a Deus editado pela Difel)O João já morreu há mais de 10 anos mas continua no top ten do meu Clube dos Amigos Mortos.
Alto, magro, erecto, gargalhada histriónica , via-se que era um poeta pelo olhar...
Quando ao final do dia, naquele sótão do Restelo, o sol no ocaso do Tejo lhe batia nos olhos mel avelã. quase que jurava que ia sair dali poesia...ou me ia voltar a falar de Moledo do Minho.
Nem sequer era de lá, mas passara lá as férias desde miúdo e apegara-se ao Minho quase com paixão, bem patente, aliás, no livro Graças a Deus, publicado em 94.
E contava-me dos seus tempos de fado vadio. Mas isso o João Braga saberá mais do que eu, já que cantou vários fados escritos pelo João e vadiaram juntos muita vez !
Claro que também falávamos do Benfica...ele era um Fezas Vital. tinha um certo orgulho do pai ter sido presidente do glorioso quando este foi Campeão Europeu.
Evidente que falávamos de publicidade... era a nossa vida, ou boa parte dela !
Eu gostava de fazer jingles e fazia-os bem...a mensagem passava toda, tudo rimava e, alguns, ficaram mesmo na memória de muita gente.
O que levava o João a dizer - porque é não te atiras a escrever a sério ?
- O quê, poesia da tua ?Nem penses...não tenho unhas !
A discussão acalorava-se e as palavras como talento, inspiração, sensibilidade, cruzavam-se com outras expressões mais"académicas.".vai-te lixar, pá !
Um dia, em 88, lancei-lhe o desafio:
- Eu escrevo, tu vês o tema e quase com as mesmas palavras reescreves e depois comparamos.
Desconfiou mas aceitou !
Rebuscando, suando, demorando, procurando fazer o meu melhor, escrevi um poeminha pequeno, que dizia assim :
De Tântalo
sinto a sede
dessa água de rio
já navegado.
Mergulho nas correntes da emoção
Afundo-me em ondas de desejo
E em gritos de silêncio
afogo a solidão
...soçobro
só
porque
te
vejo !
O João leu, puxou da caneta e, sem hesitações, sem suores nem delongas escreveu:
De Tântalo
tenho a sede de água
de rio antes navegado.
E são de emoção
as correntes,
e de desejo as ondas
em que mergulho e me afundo,
e me afogo
no grito derradeiro do silêncio,
e me soçobro.
De Tântalo
só porque te vejo !
Pespeguei-os na parede por detrás de mim e sempre que a conversa vinha à baila eu limitava-me a apontar...
Tenho saudades destes tempos...tenho saudades do João !